quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Noite feliz ( por luiz vilela )
Entre, Pai. Entre, Mãe. Entre, Joaquim. Vô Zeca. Vó Mariquinha. Tio Nunes. Rosa. Que bom, que bom que vocês vieram - eu estou tão feliz. Vai ser uma noite linda. Vai ser a noite mais bela de todas. Vamos, sentem, ocupem seus lugares.
E o Pretinho? Por que o Pretinho não veio? Você também devia ter vindo, Pretinho. Aí eu te pegava e te punha no colo - você era tão macio, tão quentinho. Miau... miau... Que saudades, Pretinho...
Sentem, sentem. A senhora está tão bonita com esse vestido, Mãe. Vô, o senhor não larga seu cigarrão de palha, hem? E o senhor, Tio Nunes, cuidado, não vai contar aquelas piadas bobagentas. Vó Mariquinha, sabe que a senhora fica muito elegante com esse coque? E a Rosa? Sempre com esse sorriso... Joaquim, quantos anos, hem? Quantos anos... Muita água passou debaixo da ponte...
E o senhor, Pai? O senhor está tão sério; tão calado. Por que o senhor me olha assim? Por que o senhor não fala nada comigo? Fale, Pai; fale alguma coisa. Não fique me olhando assim. Vocês todos, parem de me olhar desse jeito. Por favor. Meu Deus, meu Deus... Tem dó de mim... Eu não queria isso, juro que eu não queria...
Não! Não e não! Onde está sua fibra, menina? Minha fibra? Minha fibra está aqui - ora, bolas. Pensaram que eu fosse fraquejar? Pois estão muito enganados. Quem vos fala é a Aristotelina - a Lina. Há meses que eu venho planejando essa noite; pensam que eu vou desistir agora? Nunca.
Será uma noite única. Será uma noite sem igual. Nem todas as luzes de todas as casas juntas da cidade brilharão mais do que esta casa nesta noite de Natal. Nem todas as luzes de todas as ruas... Ai, Lina, você é impagável; parece que você nunca saiu do palco. Não saí mesmo: você sabe, uma vez atriz...
Joaquim, lembra daquele Natal em que eu te pedi uma porção de lâmpadas - eu ia iluminar toda a casa, ia fazer um colar de lâmpadas - e aí você me trouxe... Ah, meu Deus... Você me trouxe meia dúzia, Joaquim, meia dúzia de lâmpadas! Então eu falei: o que eu vou fazer com meia dúzia de lâmpadas? O que eu vou fazer? Aí você... Você falou... Eu não lembro... O que você falou?... Eu não lembro... Minha memória... Minha cabeça...
Noite feliz, noite feliz, o Senhor, Deus de amor, pobrezinho, nasceu em Belém. Não foi fácil: cada garrafa, um posto. Naquele maior, o sujeito: para quê? Eu: não é da sua conta. Ele: se eu não souber, eu não posso vender. Eu, então: é para tirar a cera do assoalho, assoalho de tábuas, casa antiga. Antipático. Depois, no último posto, o rapazinho: e aí, vó, vai virar motorista agora? Vou, eu vou fazer uma viagem pro céu. Então me leva com você, que a coisa aqui na terra tá braba. Mas ele foi gentil, ele foi atencioso.
Os sinos, eles estão batendo. Missa da meia-noite. Onze e quarenta e cinco. Quinze minutos. Nunca houve ninguém tão só. Nunca alguém, nesse mundo, se sentiu tão só. Nem se eu estivesse - só eu, só eu de gente - nem se eu estivesse lá num deserto de Marte ou lá numa cratera da Lua. Se o telefone tocasse. Se o telefone tocasse, talvez...
Chega. É hora. A meia-noite se aproxima. Vamos. Noite feliz, noite feliz, o Senhor... Uma garrafa aqui; assim. Outra aqui... Agora essa... Mais essa... E essa... Pronto. Que cheiro forte... Podia ser o cheiro de jasmim que antigamente, nas noites de verão, entrava pela janela aberta e inundava esta sala onde todos nos reuníamos e conversávamos e éramos felizes...
Meia-noite. Pego esta caixa; tiro um fósforo; risco e... Eis! O fogo!
E o Pretinho? Por que o Pretinho não veio? Você também devia ter vindo, Pretinho. Aí eu te pegava e te punha no colo - você era tão macio, tão quentinho. Miau... miau... Que saudades, Pretinho...
Sentem, sentem. A senhora está tão bonita com esse vestido, Mãe. Vô, o senhor não larga seu cigarrão de palha, hem? E o senhor, Tio Nunes, cuidado, não vai contar aquelas piadas bobagentas. Vó Mariquinha, sabe que a senhora fica muito elegante com esse coque? E a Rosa? Sempre com esse sorriso... Joaquim, quantos anos, hem? Quantos anos... Muita água passou debaixo da ponte...
E o senhor, Pai? O senhor está tão sério; tão calado. Por que o senhor me olha assim? Por que o senhor não fala nada comigo? Fale, Pai; fale alguma coisa. Não fique me olhando assim. Vocês todos, parem de me olhar desse jeito. Por favor. Meu Deus, meu Deus... Tem dó de mim... Eu não queria isso, juro que eu não queria...
Não! Não e não! Onde está sua fibra, menina? Minha fibra? Minha fibra está aqui - ora, bolas. Pensaram que eu fosse fraquejar? Pois estão muito enganados. Quem vos fala é a Aristotelina - a Lina. Há meses que eu venho planejando essa noite; pensam que eu vou desistir agora? Nunca.
Será uma noite única. Será uma noite sem igual. Nem todas as luzes de todas as casas juntas da cidade brilharão mais do que esta casa nesta noite de Natal. Nem todas as luzes de todas as ruas... Ai, Lina, você é impagável; parece que você nunca saiu do palco. Não saí mesmo: você sabe, uma vez atriz...
Joaquim, lembra daquele Natal em que eu te pedi uma porção de lâmpadas - eu ia iluminar toda a casa, ia fazer um colar de lâmpadas - e aí você me trouxe... Ah, meu Deus... Você me trouxe meia dúzia, Joaquim, meia dúzia de lâmpadas! Então eu falei: o que eu vou fazer com meia dúzia de lâmpadas? O que eu vou fazer? Aí você... Você falou... Eu não lembro... O que você falou?... Eu não lembro... Minha memória... Minha cabeça...
Noite feliz, noite feliz, o Senhor, Deus de amor, pobrezinho, nasceu em Belém. Não foi fácil: cada garrafa, um posto. Naquele maior, o sujeito: para quê? Eu: não é da sua conta. Ele: se eu não souber, eu não posso vender. Eu, então: é para tirar a cera do assoalho, assoalho de tábuas, casa antiga. Antipático. Depois, no último posto, o rapazinho: e aí, vó, vai virar motorista agora? Vou, eu vou fazer uma viagem pro céu. Então me leva com você, que a coisa aqui na terra tá braba. Mas ele foi gentil, ele foi atencioso.
Os sinos, eles estão batendo. Missa da meia-noite. Onze e quarenta e cinco. Quinze minutos. Nunca houve ninguém tão só. Nunca alguém, nesse mundo, se sentiu tão só. Nem se eu estivesse - só eu, só eu de gente - nem se eu estivesse lá num deserto de Marte ou lá numa cratera da Lua. Se o telefone tocasse. Se o telefone tocasse, talvez...
Chega. É hora. A meia-noite se aproxima. Vamos. Noite feliz, noite feliz, o Senhor... Uma garrafa aqui; assim. Outra aqui... Agora essa... Mais essa... E essa... Pronto. Que cheiro forte... Podia ser o cheiro de jasmim que antigamente, nas noites de verão, entrava pela janela aberta e inundava esta sala onde todos nos reuníamos e conversávamos e éramos felizes...
Meia-noite. Pego esta caixa; tiro um fósforo; risco e... Eis! O fogo!
O pai, o filho, o outro
Ele não gostou da casa. (Você também não gostaria, acredite.)
Era úmida, escura, inóspita. Não existia forro. As paredes exalavam um hálito defumado, as cortinas estavam encardidas, os móveis caíam aos pedaços. Não havia nada enfeitando as paredes, nem mesmo um calendário. (Você já esteve numa casa doente? Aquela era uma.)
O rapaz sentou-se num sofá desbotado, que cedeu de modo preocupante sob seu peso, e olhou para a velha empregada. Ela disse:
Seu Valdemar já vem.
E afastou a cortina de tirinhas para voltar à cozinha. Sem nada para distrair os olhos nas paredes, ele fixou a atenção no pedaço de bombril preso à antena da televisão portátil. No canto oposto, um minipinheiro de folhas amareladas, enfeitado por meia dúzia de bolas coloridas, fazia as vezes de árvore de Natal. Ele esperou, represando a vontade de sair dali. (Você nunca se arrependeu de algo que ainda está por acontecer?)
Por uma fresta das cortinas, ele pôde ver um pedaço ainda azulado do céu. Escurecia devagar naquela época do ano. Chegaram da cozinha o ruído de panelas e o cheiro de alho fritando. Ele ouviu a voz da empregada, mas não entendeu o que ela dizia. Então se levantou e colocou o rosto entre as tirinhas de plástico.
Falei que você pode ligar a televisão, se quiser, a mulher disse. Só que a imagem não é grande coisa.
A cozinha era maior do que ele imaginava. Abrigava um fogão, armários, uma enorme pia de mármore e uma mesa de fórmica, coberta por uma toalha vermelha. Pratos e talheres para três pessoas. De um dos cantos do teto, afluentes de uma mancha de infiltração avançavam em direção à lâmpada. A empregada se movia de um jeito nervoso entre o fogão e a mesa. Coxeava de uma perna, ele reparou.
Quando se voltou, deu de cara com o homem parado às suas costas.
Tinha se barbeado e penteado os cabelos com capricho, usava uma camisa nova de mangas compridas, calça vincada e sapatos. Recendia a sabonete de pinho.
Ele notou que, vestido daquele maneira, o homem assumia um ar solene - estava habituado a vê-lo de macacão e botinas. Parecia até mais magro vestido com aquelas roupas. E pouco à vontade.
Você quer um aperitivo, Cléber?, o homem perguntou.
E, sem esperar pela resposta, pegou uma garrafa de cachaça e dois copos no armário da cozinha.
Beberam sem brindar. O homem estalou a língua, satisfeito. Ele sentiu o ardor da bebida na garganta. Lacrimejou, tossiu. E percebeu que a empregada olhava com curiosidade para seu rosto.
Essa é da boa, o homem disse.
E serviu-se outra vez. A empregada abriu o forno e espiou o assado. O cheiro espalhou-se pela cozinha, foi capturado pelas narinas do rapaz e classificado como bom.
Podem ir sentando, a mulher disse. Tá tudo pronto.
O homem puxou a cadeira para o rapaz e, depois, sentou-se de frente para ele. Entre os dois, a empregada colocou as travessas com a comida. Por último, protegendo as mãos com um guardanapo, retirou o assado do forno. Lombo com batatas.
O homem esperou que a mulher ocupasse seu lugar à mesa e então olhou para o rosto do rapaz.
Não faça luxo. A comida é simples, mas você vai ver como a Conceição cozinha bem.
O rapaz serviu-se e derrubou arroz na toalha. Manteve a cabeça baixa, evitou olhar para o homem ou para a mulher. Sabia que ambos o observavam. Estava enganado, porém: enquanto o homem abria uma garrafa de vinho, prendendo-a entre as coxas para retirar a rolha, a empregada fatiava o lombo.
Quando terminaram de comer, a empregada levantou-se para passar um café e o homem e o rapaz foram para a sala.
Gostou da comida?
Gostei, o rapaz respondeu.
O homem sorriu, satisfeito. Então entrou no quarto e reapareceu com uma caixa embrulhada em papel de presente.
Comprei pra você, disse. Feliz Natal.
O rapaz segurou a caixa e a vontade de sair correndo dali. Estava pensando que nunca deveria ter aceitado aquele convite.
Eu não trouxe nada.
Não tem problema, o importante é que você está aqui, o homem disse. Abra o seu presente.
O rapaz abriu o pacote. Uma camisa. A empregada entrou na sala com o café. E, depois de colocar a bandeja sobre a mesa de centro, ficou parada, olhando para a camisa nas mãos do rapaz. O homem falou:
Foi ela que escolheu.
Obrigado, o rapaz disse.
A mulher sorriu de um jeito tímido. E retornou à cozinha arrastando uma das pernas. O homem e o rapaz afundaram lado a lado no sofá.
E então, você pensou no que eu falei?
Antes de responder, o rapaz curvou o corpo para frente com dificuldade e colocou a xícara sobre a mesa de centro. Ganhou tempo. E falou sem olhar para o rosto do homem.
Pensei, seu Valdemar. Não posso aceitar.
O homem suspirou.
Não pode por quê?
Não posso, só isso.
O homem se mexeu no sofá. Seu corpo tocou no do rapaz.
Você é orgulhoso que nem a sua mãe.
O rapaz o encarou.
Não é orgulho. É que eu tô pensando em ir embora.
Embora pra onde?
Ainda não sei, o rapaz disse. Vou pra uma cidade maior.
Você não precisa fazer isso. Pode ficar por aqui e ganhar a vida com a borracharia.
Eu vou embora.
O homem também colocou a xícara sobre a mesa. Balançou a cabeça.
Tem uma coisa que você não sabe.
Pronto, o rapaz pensou, lá vêm as histórias. Estava acostumado: desde menino escutava as conversas na cidade (diziam que ele era filho do borracheiro; mas ele sabia que não era). Só que o homem falou de outro assunto.
Eu tô doente, Cléber. Tenho pouco tempo de vida.
O rapaz baixou a cabeça, não soube o que dizer. O homem tocou em seu braço. Disse:
Eu já estive no cartório e passei tudo para o seu nome. Esta casa, a borracharia. É tudo seu.
O rapaz levantou-se do sofá.
Eu não posso aceitar uma coisa dessas, seu Valdemar.
Claro que pode. Eu sempre ajudei a sua mãe. E agora quero te ajudar.
O rapaz ficou em silêncio por um tempo. Pensava na mãe, que tinha morrido meses antes. Uma vez, chegara a conversar com ela sobre os boatos que ouvia.
E por que o senhor quer me ajudar?
Porque sim. Eu não tenho ninguém pra quem deixar as minhas coisas. Deixo pra você, que também não tem ninguém.
A mãe dissera que aquilo não passava de fofoca. Seu pai, ele sabia, era um engenheiro com quem sua mãe se envolvera na época em que a mineradora se instalou na cidade. Um estrangeiro. Quando mais novo, o rapaz gostava de imaginar o pai como um aventureiro. Um aventureiro que fora embora da cidade e que nunca voltara para visitá-lo.
Não posso aceitar.
Não depende de você, Cléber. Tá tudo no seu nome lá no cartório.
Nesse momento, a empregada surgiu entre as tirinhas da cortina.
Eu já vou me deitar. Se vocês precisarem de alguma coisa, é só chamar.
Obrigado, Conceição, o homem disse.
E então se levantou do sofá e ficou ao lado do rapaz. Pôs a mão em seu ombro.
Você não precisa vir morar aqui. E, depois que eu morrer, você pode fazer o que quiser com esta casa e com a borracharia.
Eu não vou aceitar.
O homem pareceu não ouvi-lo.
Só tem uma coisa: eu não quero que você deixe a Conceição na mão.
Às vezes, no dia de seu aniversário ou em ocasiões como aquela, o rapaz recebia presentes que, ele sabia, não haviam sido comprados pela mãe. Ele gostava de imaginar que o pai os enviara. O aventureiro estrangeiro.
O senhor conheceu meu pai?
O homem pensou antes de responder.
A sua mãe não falava dele pra você?
A mãe não gostava de falar do assunto, o rapaz lembrou. Parecia incomodá-la. Uma dor. E ele respeitava, evitava perguntas. Contentava-se com os fiapos que conhecia.
Eu já vou embora, seu Valdemar. Obrigado pelo jantar. E pela camisa.
O homem colocou outra vez a mão em seu ombro.
Posso te dar um abraço?
O rapaz pôs a caixa sobre o sofá e então ele e o homem se abraçaram. Ficaram assim por um tempo.
Quero que você me prometa que pelo menos vai pensar no assunto, Cléber.
O rapaz não disse nada. Limitou-se a recolher a caixa e a caminhar em direção à porta. O homem disse:
Eu não tenho muito tempo pela frente.
Quando chegou à rua, o rapaz sentiu alívio. Estava transpirando - devia ser o vinho, não tinha o costume de beber. Antes de se afastar, olhou uma última vez para a casa. Sua casa. Esse pensamento encheu-o com uma sensação que ele não soube definir.
Era cedo ainda e ele não pretendia voltar para o quarto-e-sala que ocupava nos fundos de uma casa. Onde sempre vivera com a mãe. Pensou em ir até um dos bares do centro, talvez encontrasse algum dos amigos. Não, ele sabia que os amigos estavam com suas famílias naquela hora.
Em frente a um sobrado, dois garotos brincavam com uma bola, que, num chute descuidado, veio rolando em sua direção. Uma bola nova em folha, que os garotos tinham acabado de ganhar. Ele agachou-se, recolheu a bola e a devolveu ao garoto. Depois, encostou-se num poste e permaneceu por algum tempo assistindo às brincadeiras dos garotos.
Pensou na mãe e lembrou-se de que ela sempre ficava triste em dias como aquele. Nunca soube por quê.
Então, de repente, ele se virou e retornou pela rua, em direção à casa do borracheiro. A sua casa. Ainda não sabia muito bem o que diria quando o homem abrisse a porta. Talvez dissesse apenas que voltara porque tinha se esquecido de lhe desejar feliz Natal.
Era úmida, escura, inóspita. Não existia forro. As paredes exalavam um hálito defumado, as cortinas estavam encardidas, os móveis caíam aos pedaços. Não havia nada enfeitando as paredes, nem mesmo um calendário. (Você já esteve numa casa doente? Aquela era uma.)
O rapaz sentou-se num sofá desbotado, que cedeu de modo preocupante sob seu peso, e olhou para a velha empregada. Ela disse:
Seu Valdemar já vem.
E afastou a cortina de tirinhas para voltar à cozinha. Sem nada para distrair os olhos nas paredes, ele fixou a atenção no pedaço de bombril preso à antena da televisão portátil. No canto oposto, um minipinheiro de folhas amareladas, enfeitado por meia dúzia de bolas coloridas, fazia as vezes de árvore de Natal. Ele esperou, represando a vontade de sair dali. (Você nunca se arrependeu de algo que ainda está por acontecer?)
Por uma fresta das cortinas, ele pôde ver um pedaço ainda azulado do céu. Escurecia devagar naquela época do ano. Chegaram da cozinha o ruído de panelas e o cheiro de alho fritando. Ele ouviu a voz da empregada, mas não entendeu o que ela dizia. Então se levantou e colocou o rosto entre as tirinhas de plástico.
Falei que você pode ligar a televisão, se quiser, a mulher disse. Só que a imagem não é grande coisa.
A cozinha era maior do que ele imaginava. Abrigava um fogão, armários, uma enorme pia de mármore e uma mesa de fórmica, coberta por uma toalha vermelha. Pratos e talheres para três pessoas. De um dos cantos do teto, afluentes de uma mancha de infiltração avançavam em direção à lâmpada. A empregada se movia de um jeito nervoso entre o fogão e a mesa. Coxeava de uma perna, ele reparou.
Quando se voltou, deu de cara com o homem parado às suas costas.
Tinha se barbeado e penteado os cabelos com capricho, usava uma camisa nova de mangas compridas, calça vincada e sapatos. Recendia a sabonete de pinho.
Ele notou que, vestido daquele maneira, o homem assumia um ar solene - estava habituado a vê-lo de macacão e botinas. Parecia até mais magro vestido com aquelas roupas. E pouco à vontade.
Você quer um aperitivo, Cléber?, o homem perguntou.
E, sem esperar pela resposta, pegou uma garrafa de cachaça e dois copos no armário da cozinha.
Beberam sem brindar. O homem estalou a língua, satisfeito. Ele sentiu o ardor da bebida na garganta. Lacrimejou, tossiu. E percebeu que a empregada olhava com curiosidade para seu rosto.
Essa é da boa, o homem disse.
E serviu-se outra vez. A empregada abriu o forno e espiou o assado. O cheiro espalhou-se pela cozinha, foi capturado pelas narinas do rapaz e classificado como bom.
Podem ir sentando, a mulher disse. Tá tudo pronto.
O homem puxou a cadeira para o rapaz e, depois, sentou-se de frente para ele. Entre os dois, a empregada colocou as travessas com a comida. Por último, protegendo as mãos com um guardanapo, retirou o assado do forno. Lombo com batatas.
O homem esperou que a mulher ocupasse seu lugar à mesa e então olhou para o rosto do rapaz.
Não faça luxo. A comida é simples, mas você vai ver como a Conceição cozinha bem.
O rapaz serviu-se e derrubou arroz na toalha. Manteve a cabeça baixa, evitou olhar para o homem ou para a mulher. Sabia que ambos o observavam. Estava enganado, porém: enquanto o homem abria uma garrafa de vinho, prendendo-a entre as coxas para retirar a rolha, a empregada fatiava o lombo.
Quando terminaram de comer, a empregada levantou-se para passar um café e o homem e o rapaz foram para a sala.
Gostou da comida?
Gostei, o rapaz respondeu.
O homem sorriu, satisfeito. Então entrou no quarto e reapareceu com uma caixa embrulhada em papel de presente.
Comprei pra você, disse. Feliz Natal.
O rapaz segurou a caixa e a vontade de sair correndo dali. Estava pensando que nunca deveria ter aceitado aquele convite.
Eu não trouxe nada.
Não tem problema, o importante é que você está aqui, o homem disse. Abra o seu presente.
O rapaz abriu o pacote. Uma camisa. A empregada entrou na sala com o café. E, depois de colocar a bandeja sobre a mesa de centro, ficou parada, olhando para a camisa nas mãos do rapaz. O homem falou:
Foi ela que escolheu.
Obrigado, o rapaz disse.
A mulher sorriu de um jeito tímido. E retornou à cozinha arrastando uma das pernas. O homem e o rapaz afundaram lado a lado no sofá.
E então, você pensou no que eu falei?
Antes de responder, o rapaz curvou o corpo para frente com dificuldade e colocou a xícara sobre a mesa de centro. Ganhou tempo. E falou sem olhar para o rosto do homem.
Pensei, seu Valdemar. Não posso aceitar.
O homem suspirou.
Não pode por quê?
Não posso, só isso.
O homem se mexeu no sofá. Seu corpo tocou no do rapaz.
Você é orgulhoso que nem a sua mãe.
O rapaz o encarou.
Não é orgulho. É que eu tô pensando em ir embora.
Embora pra onde?
Ainda não sei, o rapaz disse. Vou pra uma cidade maior.
Você não precisa fazer isso. Pode ficar por aqui e ganhar a vida com a borracharia.
Eu vou embora.
O homem também colocou a xícara sobre a mesa. Balançou a cabeça.
Tem uma coisa que você não sabe.
Pronto, o rapaz pensou, lá vêm as histórias. Estava acostumado: desde menino escutava as conversas na cidade (diziam que ele era filho do borracheiro; mas ele sabia que não era). Só que o homem falou de outro assunto.
Eu tô doente, Cléber. Tenho pouco tempo de vida.
O rapaz baixou a cabeça, não soube o que dizer. O homem tocou em seu braço. Disse:
Eu já estive no cartório e passei tudo para o seu nome. Esta casa, a borracharia. É tudo seu.
O rapaz levantou-se do sofá.
Eu não posso aceitar uma coisa dessas, seu Valdemar.
Claro que pode. Eu sempre ajudei a sua mãe. E agora quero te ajudar.
O rapaz ficou em silêncio por um tempo. Pensava na mãe, que tinha morrido meses antes. Uma vez, chegara a conversar com ela sobre os boatos que ouvia.
E por que o senhor quer me ajudar?
Porque sim. Eu não tenho ninguém pra quem deixar as minhas coisas. Deixo pra você, que também não tem ninguém.
A mãe dissera que aquilo não passava de fofoca. Seu pai, ele sabia, era um engenheiro com quem sua mãe se envolvera na época em que a mineradora se instalou na cidade. Um estrangeiro. Quando mais novo, o rapaz gostava de imaginar o pai como um aventureiro. Um aventureiro que fora embora da cidade e que nunca voltara para visitá-lo.
Não posso aceitar.
Não depende de você, Cléber. Tá tudo no seu nome lá no cartório.
Nesse momento, a empregada surgiu entre as tirinhas da cortina.
Eu já vou me deitar. Se vocês precisarem de alguma coisa, é só chamar.
Obrigado, Conceição, o homem disse.
E então se levantou do sofá e ficou ao lado do rapaz. Pôs a mão em seu ombro.
Você não precisa vir morar aqui. E, depois que eu morrer, você pode fazer o que quiser com esta casa e com a borracharia.
Eu não vou aceitar.
O homem pareceu não ouvi-lo.
Só tem uma coisa: eu não quero que você deixe a Conceição na mão.
Às vezes, no dia de seu aniversário ou em ocasiões como aquela, o rapaz recebia presentes que, ele sabia, não haviam sido comprados pela mãe. Ele gostava de imaginar que o pai os enviara. O aventureiro estrangeiro.
O senhor conheceu meu pai?
O homem pensou antes de responder.
A sua mãe não falava dele pra você?
A mãe não gostava de falar do assunto, o rapaz lembrou. Parecia incomodá-la. Uma dor. E ele respeitava, evitava perguntas. Contentava-se com os fiapos que conhecia.
Eu já vou embora, seu Valdemar. Obrigado pelo jantar. E pela camisa.
O homem colocou outra vez a mão em seu ombro.
Posso te dar um abraço?
O rapaz pôs a caixa sobre o sofá e então ele e o homem se abraçaram. Ficaram assim por um tempo.
Quero que você me prometa que pelo menos vai pensar no assunto, Cléber.
O rapaz não disse nada. Limitou-se a recolher a caixa e a caminhar em direção à porta. O homem disse:
Eu não tenho muito tempo pela frente.
Quando chegou à rua, o rapaz sentiu alívio. Estava transpirando - devia ser o vinho, não tinha o costume de beber. Antes de se afastar, olhou uma última vez para a casa. Sua casa. Esse pensamento encheu-o com uma sensação que ele não soube definir.
Era cedo ainda e ele não pretendia voltar para o quarto-e-sala que ocupava nos fundos de uma casa. Onde sempre vivera com a mãe. Pensou em ir até um dos bares do centro, talvez encontrasse algum dos amigos. Não, ele sabia que os amigos estavam com suas famílias naquela hora.
Em frente a um sobrado, dois garotos brincavam com uma bola, que, num chute descuidado, veio rolando em sua direção. Uma bola nova em folha, que os garotos tinham acabado de ganhar. Ele agachou-se, recolheu a bola e a devolveu ao garoto. Depois, encostou-se num poste e permaneceu por algum tempo assistindo às brincadeiras dos garotos.
Pensou na mãe e lembrou-se de que ela sempre ficava triste em dias como aquele. Nunca soube por quê.
Então, de repente, ele se virou e retornou pela rua, em direção à casa do borracheiro. A sua casa. Ainda não sabia muito bem o que diria quando o homem abrisse a porta. Talvez dissesse apenas que voltara porque tinha se esquecido de lhe desejar feliz Natal.
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
BACALHAU DE FESTA! ( Tinha umas sobras de bacalhau na geladeira e resolvi fazer esse com creme para comer com um arroz bem branquinho!!! )
-1 colher (sopa) de margarina light
- 700 g de bacalhau partido em lascas (demolhado por 48 horas na geladeira)
- 1 colher (sopa) de azeite
- 3 dentes de alho cortado em lâminas
- 2 cebolas picadas
- 1 vidro de leite de coco light
- sal e pimenta-do-reino a gosto
- 1 xícara (chá) de tomate pelado
- 1 xícara (chá) de creme de leite light
- 1 colher (sopa) de cebolinha picada
- 2 colheres (sopa) de salsinha picada
- 1 colher (sopa) de farinha de trigo
Modo de Preparo
Derreta a margarina e junte o azeite. Refogue a cebola com o alho e acrescente o tomate pelado. A seguir, adicione o leite de coco e o creme de leite light. Deixe levantar fervura e coloque as lascas de bacalhau, a cebolinha, salsinha, farinha de trigo e a pimenta-do-reino. Mexa rapidamente até engrossar. Corrija o sal. Sirva com arroz branco ou a gosto.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
Quero a tua verdade (Saudade) ... por fernando muller
De nada adiantam belas palavras soltas ao vento...
se o anonimato não tem endereço certo:
O tempo passa e nada acontece...
O temor vai se aliando à mentira,
e escondendo-se em arbustos tu passeias ainda...
e a verdade, tão simples, que sempre vence
mantém-se do teu coração distante...
e assim continuamos:
eu, em minhas tardes ensolaradas...
e você, nas frias e vazias madrugadas
se o anonimato não tem endereço certo:
O tempo passa e nada acontece...
O temor vai se aliando à mentira,
e escondendo-se em arbustos tu passeias ainda...
e a verdade, tão simples, que sempre vence
mantém-se do teu coração distante...
e assim continuamos:
eu, em minhas tardes ensolaradas...
e você, nas frias e vazias madrugadas
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
A Morte - Pedro Bial
Assisti a algumas imagens do velório do Bussunda, quando os colegas do Casseta & Planeta deram seus depoimentos,
parecia que a qualquer instante iria estourar uma piada,estava tudo sério demais, faltava a esculhambação, a zombaria, a desestruturação da cena,
mas nada acontecia ali de risível, era só dor e a perplexidade, que é mesmo o que causa em todos os que ficam.
A verdade é que não havia nada a acrescentar no roteiro:
a morte por si só, é uma piada pronta.
A morte é ridículo.
Você combinou de jantar com a namorada, está em pleno tratamento dentário.
Tem planos para semana que vem, precisa autenticar um documento em cartório...
Colocar gasolina no carro e no meio da tarde...
MORRE.
Como assim?
E os e-mails que você ainda não abriu?
O livro que ficou pela metade?
O telefonema que você prometeu dar a tardinha para um cliente?
Não sei de onde tiraram esta idéia:
MORRER...
A troco de que?
Você passou mais de 10 anos da sua vida dentro de um colégio estudando fórmulas químicas que não serviram para nada, mas se manteve lá, fez as provas, foi em frente.
Praticou muita educação física, quase perdeu o fôlego. Mas não desistiu.
Passou madrugadas sem dormir para estudar pro vestibular mesmo sem ter certeza do que gostaria de fazer da vida, cheio de duvidas quanto à profissão escolhida...
Mas era hora de decidir, então decidiu, e mais uma vez foi em frente...
De uma hora pra outro, tudo isso termina...
Numa colisão na freeway...
Numa artéria entupida...
Num disparo feito por um delinqüente que gostou do seu tênis...
Qual é?
Morrer é um chiste.
Obriga você a sair no melhor da festa sem se despedir de ninguém, sem ter dançado com a garota mais linda, sem ter tido tempo de ouvir outra vez sua música preferida.
Você deixou em casa suas camisas penduradas nos cabides, sua toalha úmida no varal, e penduradas também algumas contas...
Os outros vão ser obrigados a arrumar suas tralhas, a mexer nas suas gavetas...
A apagar as pistas que você deixou durante uma vida inteira.
Logo você que dizia: das minhas coisas cuido eu.
Que pegadinha macabra: você sai sem tomar café e talvez não almoce, caminha por uma rua e talvez não chegue na próxima esquina, começa a falar e talvez não conclua o que pretende dizer.
Não faz exames médicos, fuma dois maços por dia, bebe de tudo, curte costelas gordas e mulheres magras e morre num sábado de manha.
Se faz check-up regulares e não tem vícios, morre do mesmo jeito...
Isso é para ser levado a sério?
Tendo mais de cem anos de idade, vá lá, o sono eterno pode ser bem vindo...
Já não há muito mesmo a fazer, o corpo não acompanha a mente, e a mente também já rateia, sem falar que há quase nada guardado nas gavetas.
ok, hora de descansar em paz.
Mas antes de viver tudo?
Morrer cedo é uma transgressão, desfaz a ordem natural das coisas.
Morrer é um exagero.
E, como se sabe, o exagero é a matéria-prima das piadas.
Só que esta não tem graça.
Por isso viva tudo que há para viver.
Não se apegue as coisas pequenas e inúteis da vida...
Perdoe...
Sempre!!
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